Em agosto de 2017, foi publicada a Lei Complementar nº 160, objetivando estabelecer um regramento de convalidação dos benefícios fiscais. Era uma pretensa maneira de “passar uma régua” no passado, conferir segurança jurídica aos contribuintes e manter, ainda que, por período determinado, a continuidade da fruição dos incentivos.
No decorrer do ano de 2018, vivemos (melhor, sobrevivemos a) o processo de convalidação dos benefícios fiscais. Instaurou-se no Brasil uma verdadeira caça aos Termos de Acordo, Regimes Especiais e tantos outros atos concessivos que sequer eram de conhecimento das Administrações Públicas Estaduais. Algumas UF’s, inclusive, chamaram os contribuintes a informarem os benefícios fiscais por eles usufruídos, como forma de conferir se todos haviam sido mapeados. Foi o caso de Alagoas, Rio de Janeiro e Pernambuco.
Superada essa fase, foram convalidados os atos normativos e efetuados os registros e depósitos dos atos concessivos (e pertinentes documentos comprobatórios) na Secretaria Executiva do CONFAZ. Os contribuintes, aliviados, puderam respirar e ter a garantia de que os benefícios fiscais fruídos estavam garantidos por prazo determinado, conforme as suas classificações (industrial, importador, atacadista…), algumas ainda sob discussão no âmbito de contestações apresentadas pelas UF’s que discordaram do enquadramento proposto pelo Estado concedente do incentivo.
Iniciou-se, então, uma nova fase na novela guerra fiscal dos Estados. De fato, desde o início do corrente ano, temos observado crescente movimento, entre empresas e Estados, na busca de alternativas que viabilizem a retomada de investimentos em contrapartida à concessão de benefícios fiscais, dentro dos limites impostos pela Lei Complementar nº 160/17 e do Convênio ICMS nº 190/17.
A convalidação dos benefícios fiscais pelas Unidades Federadas, por meio dos mais diversos atos normativos (foram publicadas Leis, Decretos, Instruções Normativas, Portarias), escolhidos por cada Unidade Federada de acordo com a sua conveniência ou interpretação jurídica, conferiu certa (mas limitada) visibilidade nacional aos mais variados incentivos fiscais concedidos pelos Estados.
Não era o cenário original pretendido pela LC! Se resgatarmos na memória, a ideia inicial era a total publicidade dos benefícios fiscais concedidos: no Portal Nacional da Transparência Tributária seriam divulgados os atos normativos e respectivos atos concessivos de forma que todos os contribuintes pudessem conhecer os benefícios fiscais concedidos e usufruídos por empresas do mesmo ramo de atuação, com porte e alcance de mercado semelhante ao seu.
Após inúmeros embates entre os Estados, o acesso das informações no Portal Nacional da Transparência, sob o pretexto de garantir o sigilo fiscal, ficou restrito às Administrações Públicas Estaduais, que podem cadastrar um número limitado de profissionais para pesquisa dos dados dos atos concessivos de outras UF’s.
Com efeito, por meio do Portal, hoje, apenas os Estados têm a possibilidade de conferir o que seus vizinhos efetivamente concederam às empresas instaladas em seus territórios e, então, estender as fronteiras dessas concessões, na tentativa de tornar mais atrativa a retomada de investimentos, geração de empregos e renda em seus respectivos territórios.
De qualquer maneira, a visibilidade (ainda que restrita) pelos contribuintes dos atos normativos convalidados pelos Estados publicados em Diário Oficial, aliada ao acesso pelas UF’s de todo o detalhamento dos atos concessivos pelo Portal Nacional da Transparência Tributária (e, ainda, a possibilidade de solicitação pelas Secretarias da Fazenda/Finanças de cópia completa dos documentos comprobatórios perante a Secretaria Executiva do CONFAZ), tem ensejado uma verdadeira corrida para novas concessões de benefícios fiscais ou, ainda, para que se implemente o chamado “cópia e cola” regional.
De fato, o art. 3º, §8º, da LC nº 160/17 e Cláusula Décima Terceira do Convênio ICMS nº 190/17 permitiu aos Estados e Distrito Federal aderirem aos benefícios concedidos ou prorrogados por outra UF da mesma região, sob as mesmas condições e nos prazos-limites de fruição,enquanto vigentes. Ou seja, observados todos os trâmites formais de registro e depósito perante o CONFAZ, é possível a adesão aos benefícios fiscais concedidos pelas UF’s da mesma região.
A implementação da “adesão” pelas UF’s, nas mesmas condições e prazos-limites de fruição, contudo, tem se materializado das mais diversas formas.
Piauí foi o primeiro que se tem notícias de ter implementado o “CTRL C, CTRL V”, na linguagem mais popular. No final de dezembro de 2018, por meio do Decreto PI nº 18.048, o Estado aderiu aos benefícios concedidos pelo Pernambuco (PRODEPE e benefício para atividade portuária) e pela Bahia.
Interessante notar que o Decreto do Piauí não transcreveu os detalhes dos benefícios fiscais e tampouco os termos e condições. Limitou-se a relacionar os atos normativos copiados de Pernambuco e Bahia e determinar que o contribuinte interessado providencie o seu credenciamento ao incentivo.
Passados alguns meses, foi a vez do Distrito Federal publicar o Decreto nº 39.753/19, pelo qual aderiu ao benefício concedido por Goiás ao setor atacadista (crédito presumido de forma que carga efetiva seja de 3%) e para os frigoríficos.
O Estado do Pernambuco também já praticou o “copiar e colar”. No início de abril, fez publicar o Decreto PE nº 47.272/19, pelo qual aderiu ao benefício consistente na concessão de crédito presumido do ICMS nas operações com Álcool Etílico Hidratado conferido pelo Estado da Bahia. Também, fez publicar o Decreto PE nº 47.307/19 e aderiu ao benefício do Piauí de redução de base de cálculo do ICMS nas operações com veículos.
Nesse processo, chama-nos atenção a postura do novo Governo de São Paulo, em caminho completamente oposto ao das gestões anteriores. Enquanto outras Unidades Federadas, com notáveis problemas financeiros estudam até mesmo a revogação de seus benefícios fiscais, como é o caso de Santa Catarina e Goiás, São Paulo parece estar pela primeira vez disposto a realmente “abrir mão” da arrecadação para atração de novos investimentos.
Prova disso é que, em março, o Governo Paulista publicou o Decreto nº 64.130/19, instituindo o regime automotivo de investimento – “IncentivAuto”. Em linhas gerais, os contribuintes que efetuarem investimento de R$ 1bilhão em novas plantas ou modernização já existentes em território paulista, gerarem 400 postos de empregos adicionais e aplicarem integralmente o investimento no Estado, poderão usufruir de financiamento do ICMS, com possibilidade de concessão de descontos (inclusive progressivos) de até 25% do saldo devedor.
Pelos termos do Decreto, não é possível saber se trata apenas de um financiamento, limitado ao valor do investimento, com pagamentos futuros mensais e descontos progressivos do saldo devedor ou, por exemplo, se o ICMS mensalmente devido pelas montadoras poderá ser utilizado como forma de amortização do financiamento, ainda que limitado a determinado percentual, tal como ocorre em vários outros Estados.
Talvez a redação simplificada do Decreto Paulista tenha sido adotada como estratégia para evitar embates com outras UF’s. Como o benefício estará atrelado à apresentação de projeto de investimento, aprovação por Comissão específica e Resolução do Secretário de Fazenda e Planejamento, apenas a concretização e efetiva concessão do financiamento por meio de contrato, de fato, evidenciará o benefício ofertado pelo Estado de São Paulo.
Não obstante, a legitimidade do procedimento adotado pelo Governo Paulista nos parece duvidosa. Embora o Decreto em referência tenha sido publicado com fundamento no art. 3º, §8º, da LC nº 160/17 e Cláusula Décima Terceira do Convênio ICMS nº 190/17 já citados (informação que consta, inclusive, do preâmbulo do Decreto), não houve uma efetiva adesão do Estado de São Paulo a outros benefícios regionais.
Hoje, não é possível afirmar que o benefício ofertado por São Paulo às montadoras será idêntico, superior ou inferior ao concedido pelo Rio de Janeiro ou Minas Gerais às fabricantes de veículos lá instaladas.
Sob a ótica jurídica, entendemos que o legislador, ao editar a LC nº 160/17, e as UF’s, ao regulamentarem o Convênio ICMS nº 190/17, pretenderam criar uma convergência de benefícios fiscais, garantindo a isonomia tributária aos contribuintes de idêntico porte e setor, na mesma região. Não nos parece ser uma janela aberta para a concessão irrestrita e descontrolada de novos incentivos fiscais.
Mas não só a adesão aos benefícios regionais tem despertado o interesse dos contribuintes por novas negociações com as Unidades Federadas. A alteração dos atos concessivos já sob utilização também está na mesa de discussões.
E, neste ponto, são distintas as intepretações adotadas pelas Unidades Federadas, ora restritivas, ora extensivas (até demais).
Conforme dispõe o art. 3º, §§ 4º e 5º, da LC nº 160/17 e o § 2º, da Cláusula Décima, do Convênio ICMS nº 190/17, a UF pode, a qualquer tempo, revogar ou modificar o ato normativo ou concessivo ou reduzir o alcance ou montante do benefício fiscal, desde que não resulte em benefício fiscal em valor superiorao que contribuinte possuía antes da sua alteração ou em redução das condições a que estava sujeito o contribuinte antes da alteração.
E o que seria “benefício fiscal em valor superior”? Se o percentual do crédito presumido for majorado, mas o contribuinte garantir o mesmo nível de arrecadação atual, o requisito da LC nº 160/17 e do Convênio ICMS nº 190/17 estaria cumprido?
Em paralelo, como combinar o referido dispositivo com a previsão da Cláusula Décima Segunda do Convênio ICMS nº 190/17, segundo a qual “os Estados e o Distrito Federal podem estender a concessão dos benefícios fiscais referidos na cláusula décima, a outros contribuintes estabelecidos em seu respectivo território, sob as mesmas condições e nos prazos-limites de fruição”?
Vale dizer, se um contribuinte do mesmo setor ou de porte idêntico possui um benefício mais vantajoso do que aquele já usufruído por contribuinte detentor de ato concessivo, poderia haver a extensão do incentivo? A extensão para contribuintes do mesmo território (leia-se, Estado) pode ocorrer ainda que implique em alteração do ato concessivo e em benefício fiscal superior ao que contribuinte gozava até então?
Daí decorre, portanto, a necessidade de se verificar, caso a caso, até que ponto eventuais pleitos ou ofertas de ampliação de benefícios fiscais atendem à nova ordem normativa e se, de fato, essa nova concessão traz segurança jurídica ao contribuinte beneficiado, como pretendeu o legislador e os Estados, com a Lei Complementar e o Convênio.
Vale lembrar que, por meio da Portaria nº 76/19, o Ministério da Economia regulamentou a forma de representação e apuração do descumprimento das regras previstas pela LC nº 160/17 e concessão de incentivo fiscal em contrariedade ao regramento da LC nº 24/75, bem como a aplicação das sanções administrativas, as quais impedem, por exemplo, a transferência de recursos da União para os cofres Estaduais.
Seguimos acompanhando de perto o tema. Por ora, parece que a declamação pelos contribuintes do sonhado “viveram felizes para sempre” no capítulo final da história da “Guerra fiscal entre os Estados” ainda demorará para acontecer.